Aos dezesseis anos, duro e sem perspectiva de emprego, a angústia passou a ser minha companheira permanente. É bem verdade que não me faltava nada. Mas, o fato de depender dos meus irmãos para as coisas mais básicas da vida deixava-me imensamente mal-humorado.
Eles percebiam meu baixo astral e, em vez de me ajudarem a controlar a situação, acabavam por dificultar muito mais à medida que colocavam entraves nos meus planos. Eram comuns comentários do tipo: “Se aquieta, moleque! Quem vai dar emprego pra você? Sendo de menor e sem instrução?”
O que eles queriam mesmo era me controlar os passos. Parece que os solteirões tinham prazer em descarregar em mim todas as frustrações recalcadas.
Mas, eu era teimoso e sabia muito bem o que queria em minha vida.
Certo dia, fui à casa de uma amiga e, lá, conheci uma senhora cujo marido, aposentado, trabalhava fazendo cobranças de uma distribuidora de livros. Foi ela quem me aconselhou a procurar o dono da firma.
No dia seguinte, compareci à distribuidora. O dono recebeu-me de forma simpática. Mostrou-se interessado em me dá o emprego, mas foi logo colocando os pontos nos is. Falou que, se eu quisesse trabalhar, tinha que ser sem registro em carteira, já que estava próxima a idade do serviço militar obrigatório. Quanto ao salário, pagava-me dez por cento do valor de cada prestação recebida. Sobre os locais de cobrança, seriam naqueles bairros em que nenhum cobrador tinha interesse em trabalhar porque os clientes eram poucos e distantes um do outro. Sem objeção, aceite as condições.
No primeiro dia de trabalho, peguei uma pasta que continha ficha de clientes do Jaçanã, Parque Edu Chaves, Tucuruvi e das Vilas Gustavo, Medeiros e Sabrina. Caso desse tempo, faria duas ou três cobranças também na Vila Mazzei. Além da pasta recheada com fichas de clientes dispersos, levava o dinheiro da condução e o guia da cidade de São Paulo.
Nunca havia ido muito além da Ponte Grande, alguma vez, até a Penha e, raramente, ao Brás. Nem o centro de Guarulhos eu conhecia. De modo que, mal havia começado a trabalhar, os problemas já se haviam iniciado.
Consultei o guia da cidade e estava lá: Jaçanã - bairro ligado à Vila Galvão, só que eu também não conhecia essa vila. Porém, recordei-me que na Avenida Guarulhos passava um ônibus verde-amarelo que fazia a linha da Penha para esse bairro e vice-versa.
Na Avenida, plantei-me no ponto do ônibus por mais de uma hora. Informaram-me que a demora era devido à existência de um único ônibus na linha.
Dentro do ônibus e percorrendo por lugares por onde nunca havia passado: Anel Viário (atual Avenida Humberto de Alencar Castelo Branco), Hospital Padre Bento e, finalmente, numa praça em que havia um avião de guerra, como monumento. Era o ponto final e o Jaçanã estava do outro lado da Rodovia Fernão Dias.
Andei um bom trecho até chegar ao primeiro cliente. Não me lembro o nome da rua. Recordo-me que nela ficava uma fábrica de tecido enorme, com as chaminés também imensas, apontadas para o céu. Na frente da fábrica, havia uma loja em que vendiam tecidos a preços bem razoáveis. (Inclusive, comprei ali, meses depois, um tecido pra mandar fazer meu primeiro terno.)
Nas minhas andanças pelo bairro do Jaçanã, imortalizado por Adoniran Barbosa, em seu famoso “Trem das Onze”, aprendi muitas coisas. Ali, tudo parecia respirar a nostalgia, talvez por ser um bairro periférico, quase ao pé da Cantareira, conservava o ar de vila campestre, com uma calmaria um tanto bucólica que só era quebrada quando se chegava à Avenida Guapira, logradouro em que se estabeleciam algumas casas comerciais como lojas de móveis e lanchonetes.
Não foi do meu tempo, mas tinha-se a impressão de que a qualquer momento o trenzinho da Estrada de Ferro da Cantareira irromperia com apitos estridentes, avisando aos últimos passageiros que estava na hora de partir ou, talvez, acabara de chegar da Luz, trazendo passageiros imaginários, com seus destinos variados. Quem sabe desceriam na estaçãozinha que - aquela altura (1976) já havia sido desativada há tanto tempo – e procurariam o cine Coliseu onde seria realizado o bailão do Zé Bétio.
O Jaçanã na época possuía vida própria. Poucos foram os bairros periféricos de uma metrópole que adquiriram tanta notoriedade como ele. E, em alguns casos, torna-se instigante. Por exemplo, o nome do bairro, originado de uma ave pequena a qual mede cerca de 23 centímetros, vive nos banhados ou nos pequenos brejos. Seria essa região o habitat natural desse tipo de ave? Possivelmente. Convém lembrar que o bairro de Adoniran Barbosa fica numa área baixa, entre o terreno acidentado do Tucuruvi e a Serra da Cantareira, talvez, ali, outrora, já fora uma várzea invadida pelas águas do Rio Cabuçu, local apropriado para aves aquáticas. Falo isso em hipótese, pois não sou paulistano e, infelizmente, não chegou a mim nenhuma informação sobre a origem daquela importante área urbana. No entanto, as boas lembranças que, de lá eu guardo na memória, nunca se apagarão; essas, eu as levarei comigo, através dos tempos.
Quando cheguei a Guarulhos em 1972, juntamente com a letra de Adoniran Barbosa, somou-se a ela o falatório do radialista Zé Bétio (Rádio Record), com sua chamada que recomendava aos que quisessem arrumar namorado ou namorada que fossem ao bailão do velho Cine Coliseu. Segundo ele, esse baile era infalível. E onde ficava o Cine Coliseu? É claro que no Jaçanã!
Eles percebiam meu baixo astral e, em vez de me ajudarem a controlar a situação, acabavam por dificultar muito mais à medida que colocavam entraves nos meus planos. Eram comuns comentários do tipo: “Se aquieta, moleque! Quem vai dar emprego pra você? Sendo de menor e sem instrução?”
O que eles queriam mesmo era me controlar os passos. Parece que os solteirões tinham prazer em descarregar em mim todas as frustrações recalcadas.
Mas, eu era teimoso e sabia muito bem o que queria em minha vida.
Certo dia, fui à casa de uma amiga e, lá, conheci uma senhora cujo marido, aposentado, trabalhava fazendo cobranças de uma distribuidora de livros. Foi ela quem me aconselhou a procurar o dono da firma.
No dia seguinte, compareci à distribuidora. O dono recebeu-me de forma simpática. Mostrou-se interessado em me dá o emprego, mas foi logo colocando os pontos nos is. Falou que, se eu quisesse trabalhar, tinha que ser sem registro em carteira, já que estava próxima a idade do serviço militar obrigatório. Quanto ao salário, pagava-me dez por cento do valor de cada prestação recebida. Sobre os locais de cobrança, seriam naqueles bairros em que nenhum cobrador tinha interesse em trabalhar porque os clientes eram poucos e distantes um do outro. Sem objeção, aceite as condições.
No primeiro dia de trabalho, peguei uma pasta que continha ficha de clientes do Jaçanã, Parque Edu Chaves, Tucuruvi e das Vilas Gustavo, Medeiros e Sabrina. Caso desse tempo, faria duas ou três cobranças também na Vila Mazzei. Além da pasta recheada com fichas de clientes dispersos, levava o dinheiro da condução e o guia da cidade de São Paulo.
Nunca havia ido muito além da Ponte Grande, alguma vez, até a Penha e, raramente, ao Brás. Nem o centro de Guarulhos eu conhecia. De modo que, mal havia começado a trabalhar, os problemas já se haviam iniciado.
Consultei o guia da cidade e estava lá: Jaçanã - bairro ligado à Vila Galvão, só que eu também não conhecia essa vila. Porém, recordei-me que na Avenida Guarulhos passava um ônibus verde-amarelo que fazia a linha da Penha para esse bairro e vice-versa.
Na Avenida, plantei-me no ponto do ônibus por mais de uma hora. Informaram-me que a demora era devido à existência de um único ônibus na linha.
Dentro do ônibus e percorrendo por lugares por onde nunca havia passado: Anel Viário (atual Avenida Humberto de Alencar Castelo Branco), Hospital Padre Bento e, finalmente, numa praça em que havia um avião de guerra, como monumento. Era o ponto final e o Jaçanã estava do outro lado da Rodovia Fernão Dias.
Andei um bom trecho até chegar ao primeiro cliente. Não me lembro o nome da rua. Recordo-me que nela ficava uma fábrica de tecido enorme, com as chaminés também imensas, apontadas para o céu. Na frente da fábrica, havia uma loja em que vendiam tecidos a preços bem razoáveis. (Inclusive, comprei ali, meses depois, um tecido pra mandar fazer meu primeiro terno.)
Nas minhas andanças pelo bairro do Jaçanã, imortalizado por Adoniran Barbosa, em seu famoso “Trem das Onze”, aprendi muitas coisas. Ali, tudo parecia respirar a nostalgia, talvez por ser um bairro periférico, quase ao pé da Cantareira, conservava o ar de vila campestre, com uma calmaria um tanto bucólica que só era quebrada quando se chegava à Avenida Guapira, logradouro em que se estabeleciam algumas casas comerciais como lojas de móveis e lanchonetes.
Não foi do meu tempo, mas tinha-se a impressão de que a qualquer momento o trenzinho da Estrada de Ferro da Cantareira irromperia com apitos estridentes, avisando aos últimos passageiros que estava na hora de partir ou, talvez, acabara de chegar da Luz, trazendo passageiros imaginários, com seus destinos variados. Quem sabe desceriam na estaçãozinha que - aquela altura (1976) já havia sido desativada há tanto tempo – e procurariam o cine Coliseu onde seria realizado o bailão do Zé Bétio.
O Jaçanã na época possuía vida própria. Poucos foram os bairros periféricos de uma metrópole que adquiriram tanta notoriedade como ele. E, em alguns casos, torna-se instigante. Por exemplo, o nome do bairro, originado de uma ave pequena a qual mede cerca de 23 centímetros, vive nos banhados ou nos pequenos brejos. Seria essa região o habitat natural desse tipo de ave? Possivelmente. Convém lembrar que o bairro de Adoniran Barbosa fica numa área baixa, entre o terreno acidentado do Tucuruvi e a Serra da Cantareira, talvez, ali, outrora, já fora uma várzea invadida pelas águas do Rio Cabuçu, local apropriado para aves aquáticas. Falo isso em hipótese, pois não sou paulistano e, infelizmente, não chegou a mim nenhuma informação sobre a origem daquela importante área urbana. No entanto, as boas lembranças que, de lá eu guardo na memória, nunca se apagarão; essas, eu as levarei comigo, através dos tempos.
Quando cheguei a Guarulhos em 1972, juntamente com a letra de Adoniran Barbosa, somou-se a ela o falatório do radialista Zé Bétio (Rádio Record), com sua chamada que recomendava aos que quisessem arrumar namorado ou namorada que fossem ao bailão do velho Cine Coliseu. Segundo ele, esse baile era infalível. E onde ficava o Cine Coliseu? É claro que no Jaçanã!
Estou emocionado de alma. talvez com a mesma "nostagia daquele povo de Jaçanã, até porquê retorno hoje ao mundo encantado dos textos de Gilbertão",que por sua vez me faz viver momentos "mágicos", coisas que somente seus textos conseguem impor.
ResponderExcluirMeu caro Gil, é possível traçar nesse texto caracteristicas marcantes de sua personalidade. pode-se perceber que apezar de novo foi muito consistente, cheio de garra soube conduzir seus objetivos não se expondo a substimações de terceiros, fator que acabou desencadeando um espírito de aventureiro, ainada mais um observador nato capaz de tranmitir suas histórias de vida através da escrita. Não considero seus textos meras linhas imaginárias, vejo mais que isso. è possível perceber vida própria, acontecimentos reais. Vejo uma fuga do Gilbertão aos tempos de menino e moço, algo que demosntra a paixão pela vida, pela arte... "Jaçanã se destingue onomasticamente pela letra do poeta Adoniran Barbosa" e hoje acaba de completar sau transição em destaque pelas entrelinhas do poeta e escritor Gilbertão! Meus parabéns Gilbertãoo!
Por:(Verde)Poeta e escritor.