Na tarde cinzenta do domingo, foi ao porão, solitário, procurou algo em que pudesse firmar seus pensamentos. Pousou os olhos sobre o amontoado de móveis empoeirados, objetos que esperavam conserto. Nada que tivesse valor ou que satisfizesse sua angústia momentânea. Remexeu mais uma vez, mas só fez aumentar a frustração. Estava quase a ponto de desistir quando viu a um canto um rádio velho. Será que ainda funcionava? Pegou-o, soprou o pó que o encobria e levou-o à tomada. Conectou e girou o botão. Iniciava-se uma vinheta: “Marcos Baby Durães! Alô, Alô, São Paulo, meu amor! ... Começa aqui, mais uma Aldeia Global!!...” O programa radiofônico tomava a tarde inteira dos domingos. Nele, incluía-se a transmissão de futebol. Ah! O futebol, o Corinthians bem que poderia ganhar naquela tarde – domingo, 09 de setembro de 1973. Não agüentava mais a gozação dos colegas. Quando o time do coração perdia, a segunda-feira se tornava um calvário.
Não foi o caso. O Timão ganhou apertado no Pacaembu, somente de um a zero em cima do São Paulo. A segunda-feira seria menos desagradável.
Aproveitou o silêncio do porão e deitou-se sobre uma poltrona velha e fria, jogada a um canto. Ali ninguém o perturbaria. As pessoas detestam porões. Este nome tinha tudo a ver com ele: desilusões, frustrações, solidões. Mas era o único lugar em que tinha paz, em que podia viajar em seus pensamentos.
Lá fora ainda restava um pouco de claridade, embora a escuridão o envolvesse. Mal dava pra enxergar a luzinha acesa no painel do velho rádio. Sentindo-se protegido pelo ambiente escuro, adormeceu em paz com a vida e com o time do coração. Uma música suave levou os sonhos a outros recantos.
Madrugada. Levantou-se. Tateou a procura do interruptor. Que horas seriam? Mal enxergava a luzinha vermelha do rádio. Dali a pouco ouviu o barulho do trem passando na Variante. Era uma locomotiva a diesel. Os ruídos davam a impressão de que os trilhos eram bem próximos, mas estavam longe, além da Garagem da VUP- Viação Urbana Penha. A garagem da VUP ficava na Avenida Gabriela Mistral na Penha, entre o pontilhão da linha férrea e o atual Viaduto do Migrante Nordestino. Os ônibus da Viação Urbana Penha – VUP – imitavam disfarçadamente os da Empresa de Ônibus Guarulhos tanto nas cores como nas carrocerias que, na maioria das vezes, eram fabricadas pela Paschoal Thomeu. Dessa extinta empresa, saiam ônibus da Penha com destino ao Bom Retiro e para o Cambuci.
Na rua, o silêncio era quase completo, somente o silvo de um guarda noturno dava sinal de vida. Não era hora ainda de levantar. Aproveitaria o sono gostoso da madrugada naquele momento especial. A segunda-feira não seria pesada. Os são-paulinos que se cuidassem. Voltou a dormir. Os são-paulinos se cuidassem!
De repente abre os olhos. Há barulho na rua. Sobe e desce de pessoas, crianças batem bola. Carros buzinam na Marginal Tietê. Dá um pulo repentino. Quer ouvir a hora. Vai ao rádio. Mexe no ponteiro e ouve: “Seu Leporace agora com o Trabuco, vai comentar as notícias dos jornais. Seu Leporece agora com o Trabuco, vai dar um tiro nos assuntos nacionais.” A seguir, uma voz rouca e cansada surgiu da cascinha de plástico esverdeada e passou a comentar as manchetes do dia. Estas, pouco lhe interessavam, não tinha nada a ver com o aumento das paisagens nem com o do pão. Do pão? É claro que tinha! Ganhava tão pouco! No entanto, o que perturbava agora era o patrão. Perdera a hora! O Trabuco?!
Aí, Seu Leporace, acrescenta mais uma manchete às suas:
CORINTIANO POSTO NO OLHO DA RUA
Olá meu caro.
ResponderExcluirAlém de um grande professor, é também um ótimo pensador.
Parabéns!!!
Te desejo muito sucesso!!!