quarta-feira, 23 de junho de 2010

De segunda época

Transcorria o final de 1973. No Ginásio Estadual da Ponte Grande, que funcionava no atual prédio do Carlos Machado Bittencourt, começavam-se os preparativos para as férias. Alguns colegas estavam ansiosos a fim de viajarem para o litoral ou para o interior, mas outros tinham pesadelos à noite graças as benditas provas de segunda época. Entre esses desafortunados, incluía-se minha pessoa o que não chegou a ser uma surpresa. Desde o início do ano, as notas baixas tiradas em Matemática prenunciavam um Natal turbulento e foi confirmado: a soma das quatro notas deu exatos dezesseis pontos. Precisava no mínimo de vinte para ficar com a média final igual a cinco. Nesse caso, passaria me arrastando.

Lembro-me da última prova. Foi um massacre. Nada do que o professor ensinava, por mais que me esforçasse, entrava em minha cabeça. Não que eu fosse preguiçoso, se fosse o caso, não teria sido aprovado em várias disciplinas antes mesmo de fazer a última avaliação, nem havia disputa para me colocarem como membro de grupos. Em algumas matérias, a exemplo de História e Geografia, eu era uma fera. O meu calvário era mesmo a Matemática.

O professor, sabedor de minha fraqueza, olhava-me com um desprezo terrível. Talvez passasse pela mente dele coisa do tipo: este é um caso perdido. Mas o que me deixou chateado foi o dia em que ele entregou a última prova. Pronunciou o meu nome bem alto e deu um sorrisinho sarcástico. Levantei-me da carteira e dirigir-me à mesa do mestre a fim de receber mais um zero. Já sabia. Isso ocorrera o ano inteiro. Ao chegar diante dele, peguei a prova sem encará-lo, foi aí que ouvir a pergunta: ‘Tudo bem?” Sem me virar, respondi de forma ríspida que sim. Ao que ele retrucou: “Tudo bem, uma droga!” Houve risos entre a meninada, principalmente, entre aqueles que já comemoravam um lugar garantido na sétima série. Tudo o que podia contar naquela ocasião eram os quatro pontos do conceito de classe. Foi por meio deles que somei os dezesseis pontos que estavam na minha caderneta.

Voltei para Vila Zamataro dando chute em tudo que encontrava pela frente. Em casa, quando perguntaram se havia passado, arrumei umas desculpas esfarrapadas e contei aos familiares, mas naquela mesma tarde tratei de procurar socorro com a filha de Seu Manoel, o português do empório que morava na rua dos fundos.

Quando ia procurar Carminha, a filha de Seu Manoel, pensamentos negativos começaram a invadir minha mente. Eram o monte de “mas” seguidos de “se”. Mas se ela não tiver tempo? Se não estiver a fim? Se os pais não permitirem? Se for viajar também? Se..., Se..., Se.... Não me perdoaria caso ficasse reprovado em apenas uma matéria.

Para minha alegria, Carminha aceitou ser minha professora particular por alguns dias, mas fez uma exigência: trouxesse urgentemente o caderno. Ela queria olhar o que o professor havia ensinado durante o ano.

Caderno entregue. Os assuntos para a segunda época eram apenas dois: equações e inequações do primeiro grau.

As aulas com Carminha foram um sucesso. Aprendi como num toque de mágica tudo o que não aprendera durante o ano inteiro com um professor renomado. A filha de Seu Manoel que cursava apenas o Colegial no Conselheiro Crispiniano tirou todas as dúvidas que eu tinha dos assuntos. Finalmente, preparado para a avaliação.

No dia da segunda época, estávamos lá, meia dúzia de gatos pingados. A ansiedade era grande. Depois, entrou o professor com as provas mimeografadas debaixo do braço. Fez a chamada e não deixou de olhar para mim com aquele sorrisinho de desprezo, porém, eu estava seguro, coisa que nunca acontecera antes.

Respondi todas as questões e fui para casa cantarolando pelas ruas.

Dia do resultado. O professor entrou na sala e não quis nem olhar para o lado onde eu estava sentado. Chamou nome por nome. Quando chegou a minha vez, estendeu a mão para
entregar-me a prova e não riu, apenas balançou a cabeça e fez um gesto contraindo os lábios. Peguei-a confiantemente e dirigir-me para a carteira. Ao desenrolar o papel, estava lá. Escrito em vermelho e bem grande: 10,0. Nesse dia, quem riu muito fui eu.

domingo, 21 de março de 2010

No centro da Ponte Grande

O primeiro sinal de trânsito – semáforo – instalado na Ponte Grande data de 1974. Ele foi implantado na Avenida Guarulhos com os cruzamentos das ruas Luís Bento Damiani com Pedro Perella. No local, já àquela época, existiam alguns estabelecimentos comerciais os quais davam ao bairro uma aparência de um centrozinho, à imitação em miniatura da Penha ou do centro de Guarulhos.

O semáforo ficava (creio que ainda fica) justamente no centrozinho comercial. A direita de quem segue da Penha para Guarulhos, em frente ao farol, também existia uma agência do Banco Noroeste. Este ficava no térreo de um sobrado. Tinha as paredes pintadas em ocre e uma porta de vidro. Passei várias horas na fila daquele estabelecimento bancário, mas gostava porque o ar condicionado no recinto aplacava o calorão lá de fora.

Do outro lado da Avenida, na esquina com Luís Damiani, no alto de um sobrado com paredes cobertas de pastilhinhas coloridas, havia a escola de datilografia Centauros. Foi ali onde aprendi a datilografar. Não me recordo o nome da professora. O que ficou em minha mente sobre ela, além dos traços esbeltos, cabelos curtos e a meia idade, foi a imensa simpatia e a paciência com que nos ensinava a datilografar, usando corretamente os dedos no teclado das máquinas Remington, só depois, quando o aluno estava bem treinado, podia sentar-se diante de uma Olivetti. Numa das cópias de lição, constava no timbre: Cerâmica Jaboticabal. Nome repetido inúmeras vezes até a prática de datilografista ser aperfeiçoada.

Ali também havia aviculturas que vendiam frangos e codornas vivas ou abatidas. De vez em quando, eu dava uma paradinha em frente às gaiolas pra ficar vendo as codorninhas a comerem e sempre cantando. Achava-as tão bonitinhas! Dava-me vontade de comprá-las pra criar em casa, mas me deparava com um problema: não havia espaço. Queria as avezinhas apenas como bichinhos de estimação, não achava legal aquele papo de levarem às coitadinhas pra panela. Quantos às galinhas, tudo bem. Quando era criança, minha avó me falou que elas são os bichos mais idiotas que existem no mundo animal. São capazes de ficarem vários meses deitadas em cima de um búzio, chocando, como se fosse um ovo. É uma febre, dizia vovó, fácil de curar. Basta dar um banho de água fria nela e, pronto, no outro dia, acaba-se o choco! Em minha opinião, era por isso que elas tinham um fim tão indigno.

Pra quem não gostava de franco empenado, ou seja, vivo, havia uma solução mais atraente e gostosa. Um pouco mais à frente da avicultura, havia a Doceira Ponte Grande. Era uma beleza. Lá se misturavam os aromas dos frangos assados (na televisão de cachorro) com a visão de belos doces expostos na vitrine. Eram chocolates, sonhos, confetes, doces esverdeados, amarelos, marrons, enfim, uma variedade tremenda de guloseimas. Era realmente de encher a boca d’água.

Mas, não só de frangos e doces era o comércio da Ponte. Havia também o Supermercado Zás-Trás. Que barato! Nunca vi um nome tão sugestivo. Para mim, ali tudo era especial, desde as embalagens, que traziam a figura de um coelhinho dentuço, empurrando um carrinho de compras, ao local com todas as mercadorias expostas em gôndolas. Ficava no térreo de um pequeno prédio de uns quatro ou cinco andares. Nesse prédio morava minha professora de Educação Moral e Cívica.

Só isso? Não! Havia farmácias, serralherias, restaurantes, bazares, escritórios de contabilidade e até consultório de dentista.

O meu cunhado trabalhava no Frigorífico Ibérico. Este ficava no início da Avenida Guarulhos, bem no começo da Ponte. Foi um dos locais de que ele mais gostou de trabalhar, apesar de ser pela noite. Na frente do frigorífico, ficava o açougue. Acima do balcão onde ficavam as carnes congeladas eu lia o preço e os tipos de corte: alcatra, lagarto, acém, picanha, pescoço, costela, ih! Era tanto tipo que me davam enjoo. Cansava e pra variar, meus olhos se detinham num letreiro com letras graúdas: FRIGORIFICO IBERICO. Depois o açougueiro me entregava um pacote de carne moída.

No começo da Avenida, confluência da Rua João Teruel Fregoni, o trânsito costumava congestionar. Pra resolver o problema, surgia o guarda Ubiratan (ou Ubirajara não me recordo bem) e tentava por ordem ao caos. Era uma figura estranha. Vestia-se à moda Chacrinha, possuía uma bicicleta enfeitada e era muito benquisto pelos motoristas. Estes respeitam muito o guarda excêntrico e sempre buzinavam quando passavam por ele.

domingo, 24 de janeiro de 2010

NO PORÃO DA PONTE

Na tarde cinzenta do domingo, foi ao porão, solitário, procurou algo em que pudesse firmar seus pensamentos. Pousou os olhos sobre o amontoado de móveis empoeirados, objetos que esperavam conserto. Nada que tivesse valor ou que satisfizesse sua angústia momentânea. Remexeu mais uma vez, mas só fez aumentar a frustração. Estava quase a ponto de desistir quando viu a um canto um rádio velho. Será que ainda funcionava? Pegou-o, soprou o pó que o encobria e levou-o à tomada. Conectou e girou o botão. Iniciava-se uma vinheta: “Marcos Baby Durães! Alô, Alô, São Paulo, meu amor! ... Começa aqui, mais uma Aldeia Global!!...” O programa radiofônico tomava a tarde inteira dos domingos. Nele, incluía-se a transmissão de futebol. Ah! O futebol, o Corinthians bem que poderia ganhar naquela tarde – domingo, 09 de setembro de 1973. Não agüentava mais a gozação dos colegas. Quando o time do coração perdia, a segunda-feira se tornava um calvário.

Não foi o caso. O Timão ganhou apertado no Pacaembu, somente de um a zero em cima do São Paulo. A segunda-feira seria menos desagradável.

Aproveitou o silêncio do porão e deitou-se sobre uma poltrona velha e fria, jogada a um canto. Ali ninguém o perturbaria. As pessoas detestam porões. Este nome tinha tudo a ver com ele: desilusões, frustrações, solidões. Mas era o único lugar em que tinha paz, em que podia viajar em seus pensamentos.

Lá fora ainda restava um pouco de claridade, embora a escuridão o envolvesse. Mal dava pra enxergar a luzinha acesa no painel do velho rádio. Sentindo-se protegido pelo ambiente escuro, adormeceu em paz com a vida e com o time do coração. Uma música suave levou os sonhos a outros recantos.

Madrugada. Levantou-se. Tateou a procura do interruptor. Que horas seriam? Mal enxergava a luzinha vermelha do rádio. Dali a pouco ouviu o barulho do trem passando na Variante. Era uma locomotiva a diesel. Os ruídos davam a impressão de que os trilhos eram bem próximos, mas estavam longe, além da Garagem da VUP- Viação Urbana Penha. A garagem da VUP ficava na Avenida Gabriela Mistral na Penha, entre o pontilhão da linha férrea e o atual Viaduto do Migrante Nordestino. Os ônibus da Viação Urbana Penha – VUP – imitavam disfarçadamente os da Empresa de Ônibus Guarulhos tanto nas cores como nas carrocerias que, na maioria das vezes, eram fabricadas pela Paschoal Thomeu. Dessa extinta empresa, saiam ônibus da Penha com destino ao Bom Retiro e para o Cambuci.

Na rua, o silêncio era quase completo, somente o silvo de um guarda noturno dava sinal de vida. Não era hora ainda de levantar. Aproveitaria o sono gostoso da madrugada naquele momento especial. A segunda-feira não seria pesada. Os são-paulinos que se cuidassem. Voltou a dormir. Os são-paulinos se cuidassem!

De repente abre os olhos. Há barulho na rua. Sobe e desce de pessoas, crianças batem bola. Carros buzinam na Marginal Tietê. Dá um pulo repentino. Quer ouvir a hora. Vai ao rádio. Mexe no ponteiro e ouve: “Seu Leporace agora com o Trabuco, vai comentar as notícias dos jornais. Seu Leporece agora com o Trabuco, vai dar um tiro nos assuntos nacionais.” A seguir, uma voz rouca e cansada surgiu da cascinha de plástico esverdeada e passou a comentar as manchetes do dia. Estas, pouco lhe interessavam, não tinha nada a ver com o aumento das paisagens nem com o do pão. Do pão? É claro que tinha! Ganhava tão pouco! No entanto, o que perturbava agora era o patrão. Perdera a hora! O Trabuco?!

Aí, Seu Leporace, acrescenta mais uma manchete às suas:

CORINTIANO POSTO NO OLHO DA RUA

domingo, 17 de janeiro de 2010

BASTIDORES DA PONTE GRANDE

No início da década de 1970, havia várias fabriquetas de calçados na Ponte Grande. A maioria operando na ilegalidade. Geralmente, funcionavam em fundos de quintais e seus proprietários eram oriundos de estados nordestinos, principalmente, de Pernambuco, da Paraíba e de Sergipe.

O fato de serem clandestinas não significa que eram pequenas e desorganizadas, pelo contrário, algumas delas possuíam um quadro de funcionário numeroso, variando de 10 entre 15 empregados, estes eram distribuídos numa verdadeira linha de montagem, indo do homem que cortava o couro ao moleque o qual empacotava o produto já pronto. A mão-de-obra era suprida por sapateiros nordestinos, mineiros e até paulistas se encontravam entre eles.

A mercadoria escoava-se facilmente pelas feiras livres da capital paulistana, chegando-se até exportar para cidades do interior e, às vezes, vendia-se o excedente também para outros estados, todos da região Sudeste.

Entre os sapateiros, predominavam os pernambucanos e os mineiros, os quais procediam de cidades como Santa Rita do Sapucaí, São Gonçalo e Pouso Alegre. Mas, também era comum encontrar sergipanos, cearenses e paraibanos. Os de Pernambuco procediam em maior número de Caruaru.

O regime de trabalho adotado nas fabriquetas era o da produção, ganhava-se pelo que se produzia, por isso não era rígido nem gerava dificuldades para os proprietários delas. De forma geral, não se trabalhava na segunda-feira nem no sábado, salvo, no fim de ano, época em que havia maior procura pelo produto.

O nível de instrução dos sapateiros era baixíssimo. Poucos eram os que mal sabiam desenhar o nome. Os que conseguiram passar além desse estágio colaboravam com os outros na leitura e na hora de responder as cartas dos parentes distantes. Como o Mobral estava em atividade naqueles anos, alguns se aventuravam a freqüentar as aulas que eram ministradas numa igreja na Penha. Boa parte deixava-se vencer pelo cansaço e se julgavam velhos para estudar.

Quanto ao ambiente de trabalho, não existia precariedade. Os proprietários tinham o maior zelo pela limpeza e organização. Tudo era feito no sentido de causar boa impressão aos clientes que vez ou outra visitavam as indústrias. Um barracão bem apresentável acabava refletindo de forma positiva na hora da compra do produto.

Fato curioso é que havia muita cordialidade entre os fabricantes. Um ajudava o outro naquilo que era necessário. Por exemplo: se o José não possuía uma máquina de estampar o couro, podia usar a de Pedro que, por sua vez, precisava da de José para costurar as peças de calçados. Mais um detalhe interessante: não havia concorrência. Caso José fabricasse sapatinhos para crianças, Pedro só fabricaria sandálias femininas e, assim por diante. Em outras palavras: imperava uma cooperação recíproca. Talvez o fato de que todos tivessem uma mesma origem e um mesmo histórico de vida, acabasse anulando qualquer competição que pudesse surgir.

No interior das fabriquetas, o clima era bem amistoso. Nordestino quando se junta parece tudo irmão. Todos têm os mesmos gostos, o mesmo sotaque, as mesmas marcas inconfundíveis do sol implacável. Não importa de que estado seja, olhar para um é enxergar o outro. De modo que as conversas giravam sempre em torno dos anseios dos iam e das novidades dos que voltavam da terra natal; das saudades, da comida e, principalmente, de um dia fazer o caminho de volta, levando talvez um dinheirinho a mais na bagagem.

Numa dessas pequenas indústrias, trabalhavam dois mineiros. Ambos oriundos de Santa Rita do Sapucaí. Chegavam sempre na segunda-feira pela tarde e retornavam na sexta. Para ganharem tempo e dinheiro, eles desembarcavam num viaduto que havia perto da caixa d’água do Jardim Munhoz, na Via Dutra, vizinho à Borlem. Vinham a pé até a sapataria, onde se preparavam para o trabalho na terça.

Na quinta-feira à noite, um deles ia até o antigo terminal rodoviário da Praça Júlio Prestes e comprava a passagem de volta para o dia seguinte. Este se comprometia trazer também para todos os conterrâneos, não importava o local em que trabalhasse. Isso era prático e econômico.

Certo dia, um mineiro, cujo apelido era Foguinho - torcedor do Bota Fogo do Rio - foi à rodoviária pela primeira vez. Voltou encantado. Nunca havia visto uma coisa tão bonita em toda sua vida. E descreveu: a rodoviária da Praça Júlio Prestes é um encanto. É um mundo colorido. O teto parece um amontoado de balões de todas as cores; há escadas que sobem e que descem; cada uma mais lotada que a outra. E o melhor é que a gente não faz esforço nenhum em subir por elas. Bota o pé naquele trem e, pronto! Ele te leve pra cima; depois, te bota pra baixo. E os ônibus? Saem ônibus por todo lado. Um entra aqui; outro, sai acolá. Parece um formigueiro.

Estava muito empolgado, assumiu o compromisso de ir todas às quintas. Queria conhecer melhor aquele trem bom. Porém, um colega sabedor que ele era muito medroso, falou que odiava aquela rodoviária porque foi lá onde a polícia o levou pro xadrez, pelo fato dele não portar documentos pessoais. Esse incidente o impediu de viajar ao Rio a fim de assistir a uma partida em que o Santos jogaria.

O Foguinho, após arregalar os olhos pro companheiro, disse que, pensando bem, era besteira dele ir à rodoviária todas as semanas. Esquecessem o que havia dito. Quando desse vontade de ir até lá, compraria um cartão postal da Praça Júlio Prestes e, tudo bem, resolveria o problema. (Contato: jilberto.oliveira@yahoo.com.br)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Da Ponte ao Jaçanã

Aos dezesseis anos, duro e sem perspectiva de emprego, a angústia passou a ser minha companheira permanente. É bem verdade que não me faltava nada. Mas, o fato de depender dos meus irmãos para as coisas mais básicas da vida deixava-me imensamente mal-humorado.

Eles percebiam meu baixo astral e, em vez de me ajudarem a controlar a situação, acabavam por dificultar muito mais à medida que colocavam entraves nos meus planos. Eram comuns comentários do tipo: “Se aquieta, moleque! Quem vai dar emprego pra você? Sendo de menor e sem instrução?”

O que eles queriam mesmo era me controlar os passos. Parece que os solteirões tinham prazer em descarregar em mim todas as frustrações recalcadas.

Mas, eu era teimoso e sabia muito bem o que queria em minha vida.

Certo dia, fui à casa de uma amiga e, lá, conheci uma senhora cujo marido, aposentado, trabalhava fazendo cobranças de uma distribuidora de livros. Foi ela quem me aconselhou a procurar o dono da firma.

No dia seguinte, compareci à distribuidora. O dono recebeu-me de forma simpática. Mostrou-se interessado em me dá o emprego, mas foi logo colocando os pontos nos is. Falou que, se eu quisesse trabalhar, tinha que ser sem registro em carteira, já que estava próxima a idade do serviço militar obrigatório. Quanto ao salário, pagava-me dez por cento do valor de cada prestação recebida. Sobre os locais de cobrança, seriam naqueles bairros em que nenhum cobrador tinha interesse em trabalhar porque os clientes eram poucos e distantes um do outro. Sem objeção, aceite as condições.

No primeiro dia de trabalho, peguei uma pasta que continha ficha de clientes do Jaçanã, Parque Edu Chaves, Tucuruvi e das Vilas Gustavo, Medeiros e Sabrina. Caso desse tempo, faria duas ou três cobranças também na Vila Mazzei. Além da pasta recheada com fichas de clientes dispersos, levava o dinheiro da condução e o guia da cidade de São Paulo.

Nunca havia ido muito além da Ponte Grande, alguma vez, até a Penha e, raramente, ao Brás. Nem o centro de Guarulhos eu conhecia. De modo que, mal havia começado a trabalhar, os problemas já se haviam iniciado.

Consultei o guia da cidade e estava lá: Jaçanã - bairro ligado à Vila Galvão, só que eu também não conhecia essa vila. Porém, recordei-me que na Avenida Guarulhos passava um ônibus verde-amarelo que fazia a linha da Penha para esse bairro e vice-versa.

Na Avenida, plantei-me no ponto do ônibus por mais de uma hora. Informaram-me que a demora era devido à existência de um único ônibus na linha.

Dentro do ônibus e percorrendo por lugares por onde nunca havia passado: Anel Viário (atual Avenida Humberto de Alencar Castelo Branco), Hospital Padre Bento e, finalmente, numa praça em que havia um avião de guerra, como monumento. Era o ponto final e o Jaçanã estava do outro lado da Rodovia Fernão Dias.

Andei um bom trecho até chegar ao primeiro cliente. Não me lembro o nome da rua. Recordo-me que nela ficava uma fábrica de tecido enorme, com as chaminés também imensas, apontadas para o céu. Na frente da fábrica, havia uma loja em que vendiam tecidos a preços bem razoáveis. (Inclusive, comprei ali, meses depois, um tecido pra mandar fazer meu primeiro terno.)

Nas minhas andanças pelo bairro do Jaçanã, imortalizado por Adoniran Barbosa, em seu famoso “Trem das Onze”, aprendi muitas coisas. Ali, tudo parecia respirar a nostalgia, talvez por ser um bairro periférico, quase ao pé da Cantareira, conservava o ar de vila campestre, com uma calmaria um tanto bucólica que só era quebrada quando se chegava à Avenida Guapira, logradouro em que se estabeleciam algumas casas comerciais como lojas de móveis e lanchonetes.

Não foi do meu tempo, mas tinha-se a impressão de que a qualquer momento o trenzinho da Estrada de Ferro da Cantareira irromperia com apitos estridentes, avisando aos últimos passageiros que estava na hora de partir ou, talvez, acabara de chegar da Luz, trazendo passageiros imaginários, com seus destinos variados. Quem sabe desceriam na estaçãozinha que - aquela altura (1976) já havia sido desativada há tanto tempo – e procurariam o cine Coliseu onde seria realizado o bailão do Zé Bétio.

O Jaçanã na época possuía vida própria. Poucos foram os bairros periféricos de uma metrópole que adquiriram tanta notoriedade como ele. E, em alguns casos, torna-se instigante. Por exemplo, o nome do bairro, originado de uma ave pequena a qual mede cerca de 23 centímetros, vive nos banhados ou nos pequenos brejos. Seria essa região o habitat natural desse tipo de ave? Possivelmente. Convém lembrar que o bairro de Adoniran Barbosa fica numa área baixa, entre o terreno acidentado do Tucuruvi e a Serra da Cantareira, talvez, ali, outrora, já fora uma várzea invadida pelas águas do Rio Cabuçu, local apropriado para aves aquáticas. Falo isso em hipótese, pois não sou paulistano e, infelizmente, não chegou a mim nenhuma informação sobre a origem daquela importante área urbana. No entanto, as boas lembranças que, de lá eu guardo na memória, nunca se apagarão; essas, eu as levarei comigo, através dos tempos.

Quando cheguei a Guarulhos em 1972, juntamente com a letra de Adoniran Barbosa, somou-se a ela o falatório do radialista Zé Bétio (Rádio Record), com sua chamada que recomendava aos que quisessem arrumar namorado ou namorada que fossem ao bailão do velho Cine Coliseu. Segundo ele, esse baile era infalível. E onde ficava o Cine Coliseu? É claro que no Jaçanã!