domingo, 26 de julho de 2009

É FANTÁSTICO!

1973. O assunto mais discutido entre a gurizada da 6ª série D do Ginásio Estadual da Ponte Grande girava em torno de um novo programa que a Rede Globo havia colocado no ar: Fantástico, O Show da Vida. “É fantástico, da idade da pedra, ao homem de plástico, o show da vida...”. Foi esse pequeno trecho da abertura do programa que o Guito ouviu, por intermédio de uma funcionária da escola, no momento em que ele passou em frente à secretaria. Escutou e a mente marcou aquela melodia gostosa, alegre, que entra nas pessoas como se fosse uma doença contagiosa.
Coincidência ou não, um grupo de alunos, apresentou um seminário naquele mesmo dia e recorreu várias vezes a reportagens apresentadas no programa, pois elas de uma forma ou de outra tocavam no tema que eles haviam pesquisado.
Ao final dos trabalhos, o grupo que recorrera às ilustrações, tomando por referência as cenas exibidas no programa da Globo, saiu-se melhor do que os demais e, para o coroação final, ainda mereceu vários elogios da professora.
Estaria ali uma indicação para que os alunos fossem mais seletos quanto ao que deveriam ver na televisão? Ora, qualquer pessoa com o mínimo de bom senso teria deduzido tal coisa.
Ah, velha mestra! Passou o tempo em que a televisão apresentava algo tão fantástico que até poderia servir como fonte de inspiração para jovens adolescentes e merecesse rasgados elogios de um professor.
O Guito, no momento, não é mais adolescente e, se fosse, não estudaria no velho Ginásio Estadual da Ponte Grande – a instituição tem outra denominação – não dispõe mais de uma tevê com antena convencional, agora é por assinatura, porém, há dias que se cansa à procura de algo que lhe preencha o vazio de um telespectador insatisfeito. Procura em vão.
Ai que saudades da tevê de outrora!
Tudo era tão ingênuo, tão natural, tão gostoso, tão fantástico!!
O consolo que nos resta é que “O show da vida continua”.

sábado, 18 de julho de 2009

PINGO E O “AUTO EXPRESSO”

Manhã de sábado. No fundo de casa, feira-livre, barulho, vai e vem de pessoas; na porta da frente, sobe e desce de veículos, pedestres.

Da janela do quarto, Pingo viu uma pipa que cruzou o céu tangida pelo vento.

Atirou-se para fora e correu pela rua.

Ruídos de pneus queimados no asfalto.

- Seu filho da mãe, quer morrer? Olha por onde anda, moleque! Você não tem amor à vida, não? Hein, ó meu?

Contra-reação:

- Vai se ferrar, babaca!Vê se não me enche, otário!

A mãe do garoto chegou à janela e disparou:

- Já ando com o credo na boca por causa desse menino. Eu não agüento mais essa vida. Ele me prega cada susto, meu Deus!

Pingo desceu pela rua Marquês de Olinda e subiu pela Professor José Munhoz. A pipa ganhou a direção do Cruzeiro. Mais à frente, o garoto encontrou um batalhão de outros moleques que disputava quem chegaria primeiro. Uma rajada de vento mais forte enxotou a pipa para o outro lado da Via Dutra. A perseguição continuou.

Alguém advertiu que atravessá-la seria perigoso.

- Que nada! A pipa vai ser minha. Eu tenho que atravessar de qualquer jeito. Disse o Pingo.

Conseguiu a façanha: atravessou o sentido São Paulo-Rio e aguardou no canteiro central o momento oportuno para cruzar a pista oposta.

Os outros também conseguiram a travessia e juntos com ele esperavam o momento certo.

A pipa prendeu-se aos arbustos do paredão ao lado da Borlem e ameaçava sair voando.

Rápido, como uma flecha, deslizou entre os carros e atravessou.

- Consegui! Consegui! Eu sou o maioral. Ela é minha! Conseguiiiiii!!

- Cuidado com o “Auto Expresso”, Pingo! Ele vai te pegar!

E pegou. Pegou em cheio o corpo franzino de Pingo. O corpo franzino amassou a lataria frontal do “Auto Expresso”. O “Auto Expresso” arremessou-o a metros de distância. O asfalto virou uma aquarela triste de miolos e sangue. No meio da Dutra, um corpo deformado. O que restou de Pingo.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

FORA DO FOCO

Há poucos dias, vinha da padaria e encontrou na rua um aparelho estranho com esferas de vidro fixadas nas extremidades de dois tubos. Levou-o aos olhos e viu através das lentes que as coisas ganhavam proporções descomunais. Achou interessante a descoberta e saiu correndo rua acima com um sorriso nos lábios.
- Deixe-me ver isso!
- Foi que encontrei na rua, ao lado de um saco de lixo.
- É um binóculo. Jogue-o fora. Está quebrado!
Disse que ia desfazer-se do objeto, mas colocou-o por baixo da camisa e escondeu longe do alcance de algum intrometido.
À noite, os dois irmãos mais velhos saíram. Eles trabalhavam numa transportadora do Parque Novo Mundo como conferentes.
O moleque ficou sozinho em casa. Nem se quer TV havia para fazer-lhe companhia. Contentava-se olhando um catálogo de Embratur com fotos de lugares que nunca ouvira falar. De tanto manuseá-lo, já estava bem amassado e sem cor. Mas era o único divertimento que possuía.
Por volta das dezenove horas, sentou-se nos degraus do fundo da casa e focalizou com o binóculo a tela do Auto Cine Chaparral. Deliciou-se com as travessuras do Pernalonga até tarde da noite.
Com a vista cansada e resfriado pelo sereno, retirou-se para o quarto. Sobre a cama, riu das diabruras assistidas ainda há pouco.
O sono demorou ao resgate no mísero leito. Por isso, velhos fantasmas o visitaram.
Viu-se num domingo chuvoso de um finalzinho de dezembro em 1972. Na cena, lembrou quando comeu pela primeira vez um sanduíche de mortadela com guaraná. Um ato comum para muitas pessoas que para ele tornou-se um cerimonial. Mordiscava o lanche, tomava um gole devagarzinho do refrigerante e lambia os beiços com suavidade.
Do balcão, viu a tromba d’água que inundava a Avenida Guarulhos. De seus olhos brotaram algumas lágrimas que rolaram silenciosamente.
- Por que está chorando? - Perguntou o balconista da padaria.
- Não são lágrimas! É o efeito desta bebida que me faz cócegas no nariz.
Secou-as com as palmas das mãos e continuou comendo e pensando, pensando e comendo.
Deu uma pausa para um longo suspiro.
Era o primeiro domingo ausente de seus pais e dos outros irmãos. O tempo estava tão próximo, mas os lugares tão distantes. Uma semana longe de seus queridos. Uma semana que representava uma lacuna que os separavam a mais de dois mil quilômetros de distância.
Sete dias pouco representa no decorrer de uma vida, mas, que, para ele, valia uma eternidade. Dava para supor o que eles estavam fazendo lá, os lugares comuns, o de comer, até as roupas que vestiam.
O que estava fazendo ele ali, quase sozinho, num lugar tão diferente, numa cidade tão grande?
Lá fora, a chuva deu uma trégua. Coincidia com o último gole e a última mordiscada no sanduíche. Na rua, as pessoas se arriscavam em atravessar a correnteza já enfraquecida.
Ele também estava fraco. Fraco e saudoso. Assim como a chuva, ia perdendo as forças. Seu ritmo era lento, descompassado em relação às demais pessoas. Uma semana era pouco, não dera ainda para se ajustar ao corre-corre da enlouquecida cidade. Parecia uma criatura surgida de um outro mundo em que se vive em câmera lenta. Destoava em tudo: no vestir, no comer, principalmente, no falar. Era calado. Quando ousava pronunciar uma palavra, as pessoas paravam. Riam dele. Por isso, seu irmão mais velho recomendou-lhe: “Observe os outros quando falam. Aqui não se fala arrastado.” Foi mais um abismo aberto em sua vida. Lá tanta alegria, todo mundo falava, sorria.
Como não tinha pressa, atravessou a Guarulhos lentamente e foi andando; um carro quase o atropelou; olhou para cima. Consultou o tempo. A chuva passara. O sol inundava a avenida e as ruas. Sobre os telhados vermelhos do casario, a luz refletida.
Chegou em casa triste. Taciturno.
- Qual o motivo de tanta tristeza?
- Estou com saudade de casa! Da minha terra!
- Que terra que nada! Quem gosta de terra é minhoca. Sua nova terra é aqui.
Para descontrair, contou ao irmão que comera um tal sanduíche de mortadela com uma bebida que não lembrava o nome.
O irmão deu-lhe uma tremenda repreensão:
- Você anda passando fome para gastar dinheiro com porcaria?
Ficou triste de novo e emudeceu.
Ao lembrar daquele dia, chorou novamente. Desta vez, não houve disfarçar, a escuridão protegeu-lhe no aconchego do pequeno quarto em que dormia.
O exercício de pensar muito o levou a exaustão. Deu-se por vencido e adormeceu.
Acordou na manhã seguinte ao ser chamado pelos irmãos mais velhos que chegaram de mais um turno de trabalho.
Assim como a noite, o dia seria longo e solitário. Teria tempo suficiente para ver o mundo pelos novos olhos encontrados no lixo - aqueles que o irmão ordenou devolvê-los ao mesmo lugar. Só que ele não foi besta para jogar fora um brinquedo tão precioso.
Por meio dele, veria a cidade além, o horizonte por outros ângulos. Se cansasse, recorreria aos pensamentos, pensaria em outras coisas. Pensar era permitido. Ninguém mandava em seus pensamentos.

O CASO DA BENGALA

Quando cheguei ao bairro da Ponte Grande em dezembro de 1973, era apenas um adolescente de quinze anos e fui morar na Rua Ademar F. Ferrugem, na Vila Zamataro. Naquele tempo, com exceção da Rua Oito de Dezembro, as demais não possuíam qualquer tipo de pavimentação; o capim crescia solto nos terrenos baldios e, por vezes, invadia as calçadas. Era verão e as chuvas abundantes, por isso, os lamaçais dominavam todos os logradouros públicos da vila. Esse fato levava-os a praticarem verdadeiros exercícios de malabarismo ao se equilibrarem sobre os meios-fios a fim de chegarem às residências com os pés a salvo do barro.

Logo de início, o pessoal lá de casa incumbiu-me de uma tarefa matinal nada agradável para mim: comprar pão numa padaria que ficava no começo da Avenida Guarulhos, quase ao pé da velha ponte inacabada, numa das esquinas da Rua Vitória Calegari. Por sinal, era o primeiro estabelecimento comercial que se encontrava no lado direito, vindo da Penha para cá.

Eu era recém-chegado de outro estado e nada sabia a respeito dos hábitos, tampouco do vocabulário paulista. Sendo assim, quando me mandaram comprar uma “bengala” na padaria, questionei a maluquice de se comer um bastão de madeira no café da manhã. Diante de uma explicação mal dada e, certamente, maldosa, lá fui eu, comprar o tal pão com nome esquisito. Afinal, “manda quem pode; obedece quem tem juízo”.

Na padaria da avenida: ‘ – Meu Senhor, eu quero uma bengala de pão!’ – ‘ – Ora, vá pros raios que te partam. Já viste vender na padaria outra bengala que não seja de pão? Ora, veja!’ O breve mal entendido de minha parte causou risos entre os balconistas e fregueses que ali se encontravam.

De “bengala” embrulhada e com o rosto queimando de raiva, atravessei a Avenida e seguir pra casa. Na hora do café, desabafei. Por que não me explicaram direitinho que pão aqui tinha outro nome? Não poderiam ter me evitado passar vexames no meio de pessoas estranhas? Era assim mesmo, dali pra frente ficasse esperto. Tomasse atento às coisas. É com a escola da vida que mais se aprende.

Restabelecido do vexame da manhã, plantei-me à janela dos fundos e fiquei apreciando a paisagem urbana. Pouco conhecia, por isso, não identificava os limites entre Guarulhos e São Paulo. Pra ser sincero, achava que Guarulhos era um bairro da capital paulista e misturava áreas dos dois municípios em um território comum. Quem nasce e mora na Ponte Grande sabe que o Rio Tietê é a linha que demarca a fronteira entre os dois municípios, mas naquele tempo, eu não sabia nada disso.

Do ponto onde eu estava, via a grande tela do autocine Chaparral, na Avenida Condessa Elizabeth Rubiano, do outro lado do rio. Não compreendia por que construíram um autocine num lugar tão isolado. Só depois tive conhecimento que eram conveniências para os adultos. Realmente eram justificáveis os fins. Bem mais à esquerda do autocine, um frenesi de entra e sai de ônibus numa garagem me chamou atenção. Era a sede da Viação Leste/Oeste, a famosa Penha-Lapa. Os ônibus dessa empresa portavam cores azul e branco. Razão pela qual cheguei a confundi-los com os da antiga CMTC. Dias depois, meu irmão explicou-me que daquela empresa saiam ônibus que faziam uma das linhas mais extensas de São Paulo. Partiam do bairro da Penha, seguiam pela Radial Leste, atravessavam o centro da capital e paravam na Lapa. Devido ao longo percurso, apelidaram a empresa de Penha-Lapa.

Permaneci por muito tempo em minha torre de observação improvisada. Na várzea, nos confins da Vila Zamataro, um homem tomava banho nas águas de um rio. Aquela visão de alguém nadando em águas próximas encheu-me de alegria e esperança. Seria o lugar adequado para por em prática minhas qualidades de nadador das lagoas do agreste sergipano. Olhando um pouco além de onde o homem estava, estendia-se um tapete verde que cobria boa parte da várzea. Eram chácaras e mais chácaras até onde a vista alcançava.

À tarde, em conversa com outras pessoas, falei que avistei um homem nadando lá embaixo, num rio perto das chácaras. Não era novidade pra ninguém que um louco das redondezas tomasse banho nas águas poluídas do Rio Cabuçu. Aconselharam: não tome banho ali. As águas são muito sujas e podem transmitir várias doenças. Entre elas, hepatite, micose e, quem sabe, até leptospirose. Com aquela conversa desanimadora de doenças, tratei de suspender meus planos de natação, pelo menos naquele momento.