segunda-feira, 13 de julho de 2009

FORA DO FOCO

Há poucos dias, vinha da padaria e encontrou na rua um aparelho estranho com esferas de vidro fixadas nas extremidades de dois tubos. Levou-o aos olhos e viu através das lentes que as coisas ganhavam proporções descomunais. Achou interessante a descoberta e saiu correndo rua acima com um sorriso nos lábios.
- Deixe-me ver isso!
- Foi que encontrei na rua, ao lado de um saco de lixo.
- É um binóculo. Jogue-o fora. Está quebrado!
Disse que ia desfazer-se do objeto, mas colocou-o por baixo da camisa e escondeu longe do alcance de algum intrometido.
À noite, os dois irmãos mais velhos saíram. Eles trabalhavam numa transportadora do Parque Novo Mundo como conferentes.
O moleque ficou sozinho em casa. Nem se quer TV havia para fazer-lhe companhia. Contentava-se olhando um catálogo de Embratur com fotos de lugares que nunca ouvira falar. De tanto manuseá-lo, já estava bem amassado e sem cor. Mas era o único divertimento que possuía.
Por volta das dezenove horas, sentou-se nos degraus do fundo da casa e focalizou com o binóculo a tela do Auto Cine Chaparral. Deliciou-se com as travessuras do Pernalonga até tarde da noite.
Com a vista cansada e resfriado pelo sereno, retirou-se para o quarto. Sobre a cama, riu das diabruras assistidas ainda há pouco.
O sono demorou ao resgate no mísero leito. Por isso, velhos fantasmas o visitaram.
Viu-se num domingo chuvoso de um finalzinho de dezembro em 1972. Na cena, lembrou quando comeu pela primeira vez um sanduíche de mortadela com guaraná. Um ato comum para muitas pessoas que para ele tornou-se um cerimonial. Mordiscava o lanche, tomava um gole devagarzinho do refrigerante e lambia os beiços com suavidade.
Do balcão, viu a tromba d’água que inundava a Avenida Guarulhos. De seus olhos brotaram algumas lágrimas que rolaram silenciosamente.
- Por que está chorando? - Perguntou o balconista da padaria.
- Não são lágrimas! É o efeito desta bebida que me faz cócegas no nariz.
Secou-as com as palmas das mãos e continuou comendo e pensando, pensando e comendo.
Deu uma pausa para um longo suspiro.
Era o primeiro domingo ausente de seus pais e dos outros irmãos. O tempo estava tão próximo, mas os lugares tão distantes. Uma semana longe de seus queridos. Uma semana que representava uma lacuna que os separavam a mais de dois mil quilômetros de distância.
Sete dias pouco representa no decorrer de uma vida, mas, que, para ele, valia uma eternidade. Dava para supor o que eles estavam fazendo lá, os lugares comuns, o de comer, até as roupas que vestiam.
O que estava fazendo ele ali, quase sozinho, num lugar tão diferente, numa cidade tão grande?
Lá fora, a chuva deu uma trégua. Coincidia com o último gole e a última mordiscada no sanduíche. Na rua, as pessoas se arriscavam em atravessar a correnteza já enfraquecida.
Ele também estava fraco. Fraco e saudoso. Assim como a chuva, ia perdendo as forças. Seu ritmo era lento, descompassado em relação às demais pessoas. Uma semana era pouco, não dera ainda para se ajustar ao corre-corre da enlouquecida cidade. Parecia uma criatura surgida de um outro mundo em que se vive em câmera lenta. Destoava em tudo: no vestir, no comer, principalmente, no falar. Era calado. Quando ousava pronunciar uma palavra, as pessoas paravam. Riam dele. Por isso, seu irmão mais velho recomendou-lhe: “Observe os outros quando falam. Aqui não se fala arrastado.” Foi mais um abismo aberto em sua vida. Lá tanta alegria, todo mundo falava, sorria.
Como não tinha pressa, atravessou a Guarulhos lentamente e foi andando; um carro quase o atropelou; olhou para cima. Consultou o tempo. A chuva passara. O sol inundava a avenida e as ruas. Sobre os telhados vermelhos do casario, a luz refletida.
Chegou em casa triste. Taciturno.
- Qual o motivo de tanta tristeza?
- Estou com saudade de casa! Da minha terra!
- Que terra que nada! Quem gosta de terra é minhoca. Sua nova terra é aqui.
Para descontrair, contou ao irmão que comera um tal sanduíche de mortadela com uma bebida que não lembrava o nome.
O irmão deu-lhe uma tremenda repreensão:
- Você anda passando fome para gastar dinheiro com porcaria?
Ficou triste de novo e emudeceu.
Ao lembrar daquele dia, chorou novamente. Desta vez, não houve disfarçar, a escuridão protegeu-lhe no aconchego do pequeno quarto em que dormia.
O exercício de pensar muito o levou a exaustão. Deu-se por vencido e adormeceu.
Acordou na manhã seguinte ao ser chamado pelos irmãos mais velhos que chegaram de mais um turno de trabalho.
Assim como a noite, o dia seria longo e solitário. Teria tempo suficiente para ver o mundo pelos novos olhos encontrados no lixo - aqueles que o irmão ordenou devolvê-los ao mesmo lugar. Só que ele não foi besta para jogar fora um brinquedo tão precioso.
Por meio dele, veria a cidade além, o horizonte por outros ângulos. Se cansasse, recorreria aos pensamentos, pensaria em outras coisas. Pensar era permitido. Ninguém mandava em seus pensamentos.

3 comentários:

  1. Não é minha pretensão qui fazer uma análise do conto Fora do Foco. Quero apenas registrar que gostei muito dele. A despeito do Título, o que está "desfocado" não são as lentes do binóculo, mas o adolescente que o encontrou no lixo. Ele, assim como milhares e milhares neste país enfrentam os mesmos problemas: abandono familiar, exclusão social e baixa expectativa de sucesso na vida adulta. O título é apenas um pretexto que o autor usou para chamar atenção para esses problemas.
    Abraços.

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  2. Monique

    Obrigado pelo comentário postado. Espero que os meus contos estejam do seu gosto. Sei que é uma pessoa muito exigente quanto ao que ler. Ter uma leitora como você é um desafio gratificante.
    Beijos!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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